Acordei com a pior dor de cabeça que alguém pode ter na vida. Era
ressaca misturada com qualquer outra coisa que eu não conseguia dizer o quê. A
luz que entrava pelas vidraças encardidas da porta da sacada era veneno para os
meus olhos. E até o barulho dos ratos que corriam acima do forro do quarto
parecia infinitamente maior. Irritavam-me, todas essas coisas. Latejavam e
ecoavam dentro do meu cérebro, como se o que antes ficava fora, pudesse estar
passeando dentro dos meus miolos: os ratos, a luz e qualquer outro
incômodo.
A noite passada era uma lembrança distante em minha mente. Um borrão
distorcido e confuso, como se eu a enxergasse através de um vidro sujo de
poeira. Três coisas eram inteiras em minha memória: uma taça de vinho, uma boca
com batom vermelho e uma voz sedutora que fazia perguntas complicadas.
– Bonjour,
dorminhoco.
Abri os olhos com dificuldade, tentando esconder a claridade
com a mão. Quando consegui focalizar o rosto de quem me falava, percebi que
estava diante da Srta. Fontaine. Sentei-me na cama de súbito – arrependendo-me
quase instantaneamente, quando o quarto girou em uma vertigem – e encarei-a com
dificuldade. Lembranças da noite indo e vindo em ondas de pensamentos.
Tentei falar, mas minha boca estava seca, o que levou a uma
crise de tosse. Com algum esforço, sibilei cinco palavras:
– O que você fez comigo?
Ela sorriu daquele jeito indecente. E a resposta foi simples
e sincera:
– Eu o dopei.
E então tudo ficou muito nítido, como se uma parte desligada
do meu cérebro de repente decidisse voltar a funcionar. Passei as mãos pelos
cabelos, sentindo-me nauseado. Flashes de
tudo o que aconteceu passaram por minha mente, contando-me a história de uma
maneira resumida. Aquela mulher escultural adentrando o meu quarto seminua, a
porta do banheiro entreaberta, a mulher, a taça de vinho, novamente a mulher,
as perguntas... as respostas.
– Acho que você se lembrou – disse-me, com uma voz risonha.
Cambaleei para o banheiro só de roupa de baixo, tropeçando
três vezes no curto percurso até o chuveiro. Tomei um banho para refrescar os
pensamentos, sentindo minhas costas arderem, sem poder imaginar o porquê.
Depois encarei-me no espelho quebrado diante da pia. Eu parecia mais branco que
o normal – talvez pelo susto, talvez pelo vinho. Meus olhos escuros estavam
saltados e uma enorme mancha roxa era visível em meu pescoço: quando eu a
toquei, me lembrei do motivo dela estar ali. Virei-me de costas para o espelho
e encarei-o por cima dos ombros. Finos riscos vermelhos manchavam a pele branca
de sangue: arranhões. “Agora está tudo
perdido”, pensei. Depois me peguei a devanear sobre centenas de coisas ao
mesmo tempo. Três delas, porém, eram as mais frequentes: Dorota, Caterine e a
minha traição.
Eu me sentia sujo e culpado. E, por mais que parecesse
insanidade, ainda tinha alguma esperança de que nada tivesse acontecido. Então
Caterine entrou no banheiro, desfilando seu andar imponente: minhas esperanças
ilusórias foram-se embora tão facilmente quanto todos os meus outros
pensamentos. Eu precisava saber qual era o tamanho do estrago.
Ela veio em minha direção com aqueles olhos bem delineados que me
colocavam na defensiva. Minha cabeça ainda estava dolorida e meus sentidos
confusos. Dei três passos para trás, tentando esquivar-me de seu hipnotismo.
Não era tão simples assim. Caterine estava tão perto que me vi respirando no
mesmo ritmo que ela, sem querer.
Analisou-me com olhos taxativos e depois concluiu:
– Você parece cansado.
Uma ideia me ocorreu. Precisei
do máximo de concentração para não permitir que escapasse por entre meus demais
pensamentos confusos pelos efeitos retardatários do álcool. E então eu decidi:
se tudo aquilo era um jogo, eu iria vencer. Improvisei minha melhor cara de mau
e empurrei Caterine para a parede mais próxima, prendendo-a de um jeito que não
poderia se mover. Aproximei a boca de seu ouvido para dizer:
– Eu nunca me canso – ela estremeceu, depois sorriu. Começou a dizer
qualquer coisa, mas eu a interrompi: – Quero que me diga o que você sabe.
– E o que eu ganho? – a pergunta era sugestiva. Senti-me tentado a um
milhão de respostas, mas forcei-me a dizer aquela que me pareceu mais
imparcial.
– E o que você perde? – repliquei.
Ela pensou por um instante, depois sussurrou uma única palavra em meu
ouvido. Senti-me agitado – não pela proximidade ou por qualquer coisa do tipo,
mas pelo medo.
A palavra foi:
– Tudo.
Eu a soltei. Distanciei-me cambaleante, retomando a expressão
assustada. Caterine aproveitou para reassumir o controle da situação, enquanto
eu voltava a afundar-me em devaneios. Fui até a mala e vesti qualquer coisa que
encontrei. Ela reapareceu, parando na porta do banheiro com seu ar triunfante.
– Eu perguntei – disse-me, com um sorriso torto – e, com os incentivos
certos, você respondeu.
– Do que... do que você está falando? – gaguejei enquanto abotoava a
camisa.
– Estou falando de Phillip Mason. E do crime que você pretende
cometer, Vicent Nicholls – aqui ela me lançou um olhar de falsa compaixão – Não
se lembra de nada, querido? A noite passada não foi tão boa para você?
– Você está blefando.
– Sabe que não estou – ela parou diante de mim, com seu rosto a poucos
centímetros do meu – E, caso esteja interessado, posso dizer que nós dois
podemos nos beneficiar das circunstâncias.
– Não vejo como isso possa ser possível.
Era o que Caterine esperava que eu dissesse. E sua resposta já estava
pronta:
– Tenho uma proposta a fazer – disse, e prosseguiu sem que eu
mostrasse sinal de interesse – Eu o ajudo. Faço o que for preciso, Vicent. E
você me paga como eu mereço.
– Do que está falando, sua desequilibrada? – eu quase gritava.
– Ora, vamos lá, Vicent! – ela falava com impaciência – Acha que eu
não sei? Pode parar com o teatrinho! Você só pretende matá-lo porque quer a
herança que seu papaizinho deixou para trás... Eu quero a metade do dinheiro!
Levei a mão à boca de espanto.
– Sua desgraçada, o que acha que eu sou? – disparei, contendo minha
vontade de esbofeteá-la, para não manchar minha honra batendo em uma mulher – Não é pelo dinheiro! É pelo meu pai! É por minha esposa! É pela minha vingança!
Eu farei a justiça que ninguém mais teve coragem de fazer!
Quando percebi já estava gritando, e respirando de um jeito
entrecortado. Uma tontura fez o mundo girar mais depressa sob meus pés e eu me
sentei de qualquer maneira no chão, antes que caísse. Encostei-me na parede,
trêmulo. Caterine não pareceu se abalar. Na verdade, ela quase sorria. Seus
olhos brilhavam com a cobiça que lhe transbordava visivelmente. Então eu
percebi a idiotice que acabara de fazer.
– Parfait! – disse, de um
jeito meio maníaco – Se esse é o problema, proponho uma mudança de planos: eu
te ajudo a matá-lo e fico com todo o
dinheiro.
Tentei não gritar ao dizer:
– E se eu disser não?
O sorriso virou uma expressão de fúria.
– Então eu vou à polícia denunciá-lo, Sr. Nicholls. E pior que isso – ela
apontou um dedo diretamente para o meu rosto – Antes vou a Phillip Mason.
O sangue gelou em minhas veias. Engoli em seco.
– Você não...
– Seria capaz? – ela completou minha frase – Seria sim – Caterine estendeu-me
a mão e eu me vi em um beco sem saída – Temos um trato?
Eu me levante e apertei-lhe a mão estendida, com muito desgosto.
Teatralmente e parecendo ensaiado, Christopher entrou no quarto aos
tropeços. Ofegante e suado, com os cabelos ruivos desgrenhados grudados à
testa.
– O que houve, garoto? – perguntei, aproximando-me dele e segurando-o
pelos ombros.
Chris fez um grande esforço para conseguir falar, em meio a respiração
entrecortada:
– Eu... o encontrei... senhor!
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